«Quase a comemorar 40 anos de canções, Sérgio Godinho prepara-se para revelar uma série de novos temas nos concertos de 26, 27 e 28 na Culturgest, em Lisboa, e no sábado seguinte, 4, na Casa da Música, no Porto.
Não gosta de lhe chamar risco. Mas a verdade é que a opção é quase inédita em 39 anos de carreira. Sérgio Godinho prepara um concerto onde a maioria dos temas (sete ou oito) está por gravar.
Ao espetáculo chama "Final de Rascunho", embora já não considere que as canções estão por terminar - "Poderão sofrer apenas pequenas evoluções até janeiro, altura em que entro em estúdio."
Mas "Final de Rascunho", concerto em construção, também é mais do que uma antecipação de um álbum por nascer e por titular. Será um momento íntimo de partilha. Um convite para o público passar para o lado dos bastidores, para entrar e seguir o processo criativo do músico e conhecer algumas das suas dúvidas, opções, obsessões. Para investigar a mão esquerda de Sérgio Godinho, "a mais expressiva".
"As pessoas já interiorizaram as canções"
É o próprio artista que recorda, numa conversa com o Expresso, algumas velhas críticas a concertos em que se escrevia que "as músicas antigas venceram". Nada de extraordinário - do seu ponto de vista -, tendo em conta que cada nova música leva algum tempo a impor-se: "Quando se canta uma canção antiga há logo palmas. As pessoas já interiorizaram as canções e gostam delas. Quando se apresenta um novo tema surge sempre uma sensação de estranheza, uma certa perplexidade; até porque nem tudo é compreensível quando somos confrontados com um novo território musical e harmónico. Temos de esperar que essas formas se encaixem com as formas de cada ouvinte." Um processo pelo qual passaram, de resto, muitas das suas antigas canções.
Sérgio Godinho tinha pensado gravar este ano um novo álbum, mas por várias razões acabou por não o fazer. "Foi um ano complicado." "Final de Rascunho" antecipa por isso o registo dessas canções. Mas também navega pelo passado. Incluirá temas antigos, apresentados nalguns casos em novas versões, e terá outras prestações. Algumas das canções mais conhecidas irão, porém, descansar, "repousar", não porque o músico se importe de repetir em palco os temas de que o público mais gosta mas apenas porque alguns deles não se ajustam a um alinhamento que pretende enveredar por um território de partilha de novos prazeres.
Haverá temas que começaram por ser apenas instrumentais, mas deles acabou por nascer uma letra própria, à semelhança do que já tinha acontecido em músicas tão conhecidas como 'É Terça-Feira' (tema instrumental criado para o filme "Kilas, o Mau da Fita", de 1981).
Espetáculo de novos gostos
Mas é também pelo facto de "Final de Rascunho" pretender ser um espetáculo de novos gostos a partilhar com o público que o artista decide levar aos palcos da Culturgest, em Lisboa, e da Casa da Música, no Porto, alguns dos seus poemas, editados no ano passado pela Assírio & Alvim ("O Sangue por Um Fio"), e um texto poético onde faz considerações "mais realistas" sobre a música - que lerá, apenas com música de fundo, segundo uma cadência musical, num registo de spoken word.
O livro de poemas "O Sangue por Um Fio" resulta de uma escrita sem música, num criador que começa sempre por compor a frase musical e nela encontra naturalmente o caminho da letra. Neste caso, os poemas foram surgindo uns a seguir aos outros, ao longo de três meses de dedicação, e afirmando desde o início a sua natureza mais críptica, sem a mesma intenção de clareza que o músico persegue por norma nas letras das canções.
Sérgio Godinho vai também mais além na contextualização dos novos temas: "Quero explicar como é que as canções nascem, como é uma canção em bruto, qual é a relação que se estabelece com um determinado instrumento, o rumo, o fio condutor." Ou seja, incluirá no concerto conversas que naturalmente estabelece com as pessoas e que, de certa forma, também respondem à sua própria natureza: "Também gosto de saber como é que as coisas surgem."
Fotografias de um músico
O músico, com talento em diversas áreas, mostrará ainda algumas das fotografias que tem vindo a tirar desde há algum tempo à sua mão esquerda e em cima da sua mesa de trabalho terá alguns dos seus papéis de "rascunho", que o público poderá ver através de uma projeção ao vivo, realizada por André Godinho (seu filho).
"Final de Rascunho" vai ser um espetáculo de momentos distintos, "de muitas cambiantes", para o qual contribuirão dois convidados (além de contar com a habitual companhia dos Assessores): Bernardo Sassetti e António Serginho. Com o primeiro Sérgio Godinho estabeleceu há vários anos um diálogo no sentido de poderem criar juntos; com o segundo, percussionista do Porto, tomou contacto num espetáculo no Teatro Nacional São João para o qual fez a música ("UBUs") e no qual António Serginho assumia a percussão. Bernardo Sassetti não tocará apenas piano ao lado de Sérgio Godinho - assumirá a composição de uma ou duas canções, "tomando a batuta" e desenvolvendo um diálogo com os restantes músicos, nuns concertos que se pretendem muito interativos.
Do pouco que se dispõe a antecipar sobre as novas canções, Sérgio Godinho sublinha uma certa crueza sonora que lhe agrada e que estende à própria forma como desenvolve a conceção do concerto - uma espécie de estado em bruto que também incute à presença em palco, sem a moldura impositiva de um cenário. E é por isso que "Final de Rascunho" promete mais do que um disco poderá revelar, mais do que o músico se dispõe a avançar antes de realizar o espetáculo. Entre acompanhantes, convidados e público, Sérgio Godinho promove e instiga um momento de criação. Um momento único para os que já compraram bilhete (a lotação da Culturgest já se encontra esgotada e só há bilhetes para a Casa da Música).»
in Expresso online, 23-11-2010
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